segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Corpo objeto e movimento humano

     Samuel Macêdo Guimarães

     Gostaria de refletir sobre uma forma de ser, um estilo de pensamento que nutre o aspecto frio e mecanicista na maneira de estabelecer ligações com as coisas do mundo: a consideração de que nosso corpo é apenas objeto.
     Quando assim agimos, reduzimos a vida a um único sentido, o da dimensão material. Assim sendo, todas as nossas relações ficam regidas por um pensamento unilateral, cujo olhar torto, dimensiona o ser humano aquém das suas reais potencialidades.
     Este equívoco nascido de uma visão frágil, de convicções unicausais, faz surgir o exagero da valorização do ter em relação ao ser, ou seja, ao Ser Humano, pois ninguém é ter humano.
     É no abandono da concepção de corpo objeto, de pensamento fracionado, alheio à totalidade e aprendendo a conviver com o corpo real, vivente de todos os seus sentidos e significados, aquele do qual temos experiência, corpo sujeito, que o mundo vai se tornando mais vivido e que nos tornamos melhor compreendidos por nós mesmos.
     Surgem dessa maneira, um conjunto de noções novas, nascidas da experiência de si mesmo, arquivadas nas memórias do nosso mundo vivido: o corpo sujeito, no qual a consciência se territorializa e reconstitui a vida humana em forma de ação com base nas causas e assim poder reconhecer a possibilidade da autoconsciência do vir-a-ser, de ser cada vez melhor.
     O movimento de ser-no-mundo é o reflexo de uma conjunção de sentidos que se desencadeiam pela consciência objetivada desse mundo. Mas não apenas consciência objetiva. A consciência de um mundo subjetivo também tem o seu lugar na construção de uma vida melhor e assim complementa-se como ser-corpo-no-mundo.
     É preciso dizer que as situações que desencadeiam as operações intuitivas estão inteiramente articuladas a um contexto de totalidade. Pedem uma significação prática, um reconhecimento corporal vivido e, certamente, uma situação concreta e aberta, para dar expressividade ao movimento pelo processo de reflexão crítica tendo por caminho a autoindagação.
     A atenção que damos a vida é proporcional à tomada de consciência que temos dos movimentos nascentes em nosso corpo. O movimento humano pode ser considerado como transcendente ao nosso corpo ou um conjunto de modalidades geradas no reflexo, percepção e intencionalidades de nosso ser total.
     A mudança de certo mundo para outro, dos movimentos construídos para mundo dos movimentos relacionais, por exemplo, exige uma corporificação da experiência para a qual se dirige a mudança, uma corporificação para vivenciar o mundo que foi mudado. Uma saída honrosa de uma visão de mundo linear para uma de visão radial.
     Uma reconstrução das condutas perceptivas do reflexo e das intencionalidades, que poderiam ser consideradas como novas corporalidades, paradoxalmente geradas do mesmo ser total. Seria então uma nova forma de ser, gerada e constituída na mudança de si mesmo?
     Demonstramos argumentos que indicam que ser-corpo-no-mundo exige uma constante reestruturação dos Espaços Tempos de Probabilidades e Possibilidades (ETPP), da mesma forma como se exige roupas adequadas para ocasiões diferentes.
     O mesmo que fazem os atores quando encenam um novo personagem, com a diferença que os corpos dos atores, nesse caso, representam um corpo construído, e na vida vivida somos nós mesmos nossos próprios autores dos movimentos ou pelo menos deveríamos ser se fôssemos autônomos.
     Ora, é preciso então pensar em alguma consistência de adequação física, mental, emocional, intelectual, espiritual entre outras, como se fossem uma só. Uma consistência de linguagens que se conectam, de corpos-no-mundo que possam construir habilidades assertivas para se viver em diferentes e distintos mundos.
     Condições que ajudem a constituir os movimentos do ser-corpo-no-mundo, no mundo que e ao qual pertencem, no jogo das intencionalidades das circunstâncias, sem perder de vista com quais Valores Humanos este jogo vai se descortinando. Esse lugar não é o mundo do corpo objeto. É o lugar de uma corporeidade na qual sujeito e objeto se reconhecem que são um só.
     Assim a importância de vivenciar situações diferentes, especialmente as ainda não vividas, é um procedimento que pode proporcionar a organização de muitos mundos vividos – em um mundo só – como um vocabulário gestual de experiências. Já sabemos por tantas provas contundentes, no mundo contemporâneo, que quando ampliamos vocabulários, convivemos melhor com diferentes mundos já constituídos.
     Sugere-se então, ao pensar na dimensão mecanicista, em uma forma de dimensioná-la mais adequadamente, construindo vocabulários de experiências de corpos-para-mundos, que também valorizem a subjetividade. Ela nos aponta ETPP de se evitar condições que produzam estereótipos de mundos vividos, de mundos desconectados da consciência de si, pois assim, constroem corpos objetos.
     Como se fazem, por exemplo, se a vida se limitasse apenas a esses mundos, nos treinamentos militares de preparação para guerras, nos movimentos de aulas de Educação Física com concepção tradicional, nos excessos cometidos nos esportes de alto rendimento por alguns, nos trabalhos em academias, quando seguem apenas o princípio unicausal do se-movimentar.
     Buscar experiências e contextos não normatizadores para dar ao movimento do ser-corpo-no-mundo, a possibilidade de estar em constante reavaliação, é corporificar experiências de corpos sensíveis, flexíveis, abertos a procedimentos fraternos. Isso é sem dúvida, compromisso de todos.
     Nossa corporeidade é a possibilidade que temos de reconhecer e de ser no mundo. Ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a outros corpos, ambientes e tarefas diferentes, comprometer-se com certos projetos capazes de tornar o homem e a mulher, seres humanos, e nos empenharmos continuamente nesses projetos.
     Para fazermos aparecer tal visão de mundo é preciso estar consciente de uma metáfora para se viver, talvez uma grandiosa metáfora de alma. Espinoza nos ensina que a alma é a metáfora do corpo e não o corpo a metáfora da alma. Uma alma encarnada. Uma alma em corpo, fenomenal, viva, vivenciando sua integridade, tendo como pressuposto que somos tanto as experiências dos outros como as experiências de si mesmos e não corpos objetos.