CORPOREIDADE E NATUREZA HUMANA
Samuel Macêdo Guimarães[1]
O ser humano é capaz de manifestar seus sonhos e paixões mais profundas
ao mesmo tempo em que também pode mostrar seus mais estranhos pesadelos. O uso
da inteligência e do poder para dominação só atende às necessidades de
exploração. A ação humana seja individual ou em grupo em alguns setores, ainda
aceita a domesticação, via de regra concorda com uma vida cheia de esforço e
trabalho. Por onde andam as relações amistosas enriquecidas de afeto?
Historicamente sabemos que a escravidão é um dos modos pelo qual a
humanidade tem experiência longa. Dizemos que abominamos a escravidão e fazemos
disso um esquecimento. Não percebemos as novas-velhas formas de controle em
atitudes que conduzem à perda da liberdade individual e coletiva e,
encarceramos os que desafiam essas estreitas interpretações de relacionamento
humano.
Tudo isto pode ser modificado pela vontade das pessoas, se assim for
desejado. Alguns poderão dizer: " – Ahhhh, isso é utopia!". Mas
podemos replicar que a utopia sempre moveu a humanidade na direção da
autonomia.
Por outro lado, não se podem esquecer as barbáries vividas pela
humanidade, mais contundentemente com Stalin e Hitler entre outros, passando por
regimes de tantas guerras existentes ainda no planeta.
Ao abrir mão da liberdade o ser humano facilita o projeto civilizatório
- talvez projeto predatório - escolhendo um caminho que sob um olhar cuidadoso
e observador pode-se concluir que, no atual momento da história, esse planeta não
é um ambiente seguro, alimentador e autossustentado.
Por tais reflexões, podemos nos perguntar: o que é que acontece com
alguém que só pensa em subjugar o outro? Ou ainda: o que é que faz alguém
permitir ser subjugado pelo outro? Como é que alguém dá tal permissão, se
despoja da sua autonomia, na sua relação com o outro?
Se essa permissão é dada ou se isto realmente é possível, pode-se ter a
esperança de recuperar as relações se as escalas relacionais forem niveladas?
Isto é, ou todos com poder ou ninguém com poder? Neste dilema só se antevê uma
resposta: se não é possível para a humanidade conseguir tal ajuste, as pessoas é
precisam se viabilizar umas às outras, nas suas humanidades.
Estas são, sem dúvida, questões complexas, mas conversar sobre elas,
estabelecer diálogos, é verdadeiramente uma semeadura que podemos praticar como
exercício para prevenção da barbárie e preparação para autocrítica.
Para isso é preciso partir do princípio de que não temos respostas
prontas, as respostas poderiam ser circunstanciais, mas é preciso se deixar
questionar, se desconstruir.
Não é necessário dizer algo definitivo, mesmo porque não cremos na
possibilidade material de uma verdade absoluta. Estamos aqui pensando na
possibilidade de correr o risco, de ser aceito como somos, mas sempre na lógica
da contramão de qualquer princípio de subjugação.
Um ponto de partida pode ser a nossa
preocupação com as compreensões de mundo que cada um possui. As variadas
percepções, umas em estado de cristalização, outras em constante mutação. Todas
construídas por circunstâncias e experiências criadas pelas realidades em que
cada um vive.
A complexidade do ser humano nos leva a
pensar que a vida pode oferecer possibilidade de experimentar, conhecer,
praticar formas de ser e estar no mundo.
Quando se compreende a linguagem de
cada mundo, este mundo vivido pela compreensão da própria linguagem dá ao ser
humano sempre a possibilidade de ter a aceitação da sua verdadeira natureza,
isto é, a sua própria e singular humanidade.
Daí é possível pensar que a consciência
é de fato muito importante para relação entre pessoas. Ela é a chave para que
se coloque sob um cuidado minucioso a própria vida, nesse sentido a vida
humana. A compreensão desses fatores pode ajudar na possibilidade de superação
do mal estar civilizatório.
Assim pode gerar uma existência
emancipada, consciente das necessidades de transformações, sempre impulsionadas
pelo diálogo. Uma superação que tenha como motivação, o compartir, a
distribuição justa da riqueza. Uma integração cooperativa globalizada, desde
que seja no sentido da universalização das relações fraternas entre os povos.
O equívoco foi gerado a partir de uma
compreensão de separação entre corpo e mente. O corpo representante da matéria,
moldável, finita e a mente representando o indivisível, o inatingível. Uma compreensão
de mente como programa de computador.
Nesta visão, a vida é estática, fria e
impossibilitada de encantamento. Ficam negligenciados os cuidados subjetivos.
Perde-se a percepção do viver interagindo com o ambiente interno e externo,
pois se pensa que cérebro e corpo são separados como peças de um mecanismo.
Toda a discussão sobre a separação
entre corpo e mente parece se resolver quando se assume que somos sistemas
indeterminados e, por esta razão, existem determinados fenômenos que não
ocorrem dentro do corpo, e sim nas relações com os outros.
Cada corpo expressa sua corporeidade.
Todas as corporeidades expressam a humanidade, ou talvez uma não humanidade.
Talvez assim possa se tornar claro que o ser-corpo-no-mundo, se faça emergir,
como conhecedor das aprendizagens que florescem nascentes no mundo visível pela
corporeidade, nas experiências de se movimentar, no mundo existencial que
também é sensível.
Assim podemos sonhar com uma vida mais
humanizada que se aposse de nós. Corporeidade poderia ser um conceito que nos
remeteria a uma concepção de vida? A corporeidade só pode ser expressa na
medida em que o organismo humano elabora sentidos e significados com o ambiente
interno ou externo.
Esta poderia ser a metáfora mais
próxima de uma humanidade em harmonia com a sua natureza. Cremos que vale a
pena aceitar o desafio. O de nos tornarmos cada vez mais, apenasmente, seres humanizados.
[1]
Membro da AGRAL – Academia Grapiúna de Letras
Prof. da UESC – Universidade Estadual de
Santa Cruz